O Equilíbrio Fiscal

Publicado no Jornal Valor Econômico em 15/09/2023.

No último dia 22/08 a Câmara dos Deputados aprovou o texto do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) que passa substituir o extinto Teto de Gastos no quadro normativo brasileiro. Em meu artigo neste espaço do último dia 13/06/23, mencionei sem apresentar detalhes que o sucesso do NAF quanto à sua capacidade de estabilizar a trajetória do endividamento público, depende do conjunto de reformas adicionais que o governo estará disposto a empenhar esforços visando tornar a política fiscal sustentável. Talvez seja o momento de aprofundar um pouco mais sobre isso.

Começando pelos aspectos conceituais, diferentemente da política monetária que possui a sua disposição um único instrumento, a taxa de juros de curto prazo, a política fiscal é caracterizada pela disponibilidade de dois instrumentos: os impostos e as despesas. O antigo Teto de Gastos era uma regra fiscal orientada unicamente para estabilizar o endividamento público e, para tanto, incidia sobre um único instrumento fiscal, a despesa pública. Esta é a crítica que se fazia comumente (e acertadamente) ao teto, esta regra não possuía nenhum mandato relativo à estabilização de ciclos recessivos e quando a economia foi acometida pelo choque da Covid-19, legislação adicional teve que ser elaborada para suavizar os efeitos recessivos.

O NAF, por sua vez, se orienta a partir dos dois instrumentos fiscais disponíveis ao governo, já que atrela a dinâmica das despesas primárias à das receitas em uma proporção de 70%. Em outras palavras, esta regra é mais flexível no sentido de que o governo pode manusear instrumentos diferentes para atingir os objetivos fim da política fiscal que são a sustentabilidade do endividamento público e a suavização de ciclos de negócios.

Voltando à questão da agenda de reformas necessárias para dar sobrevida à regra fiscal. Diferentemente de 2017, quando o teto entrou em vigor e um conjunto amplo de reformas que visavam alterar a inclinação da curva do gasto obrigatório foram pensadas (e, em alguns casos aprovadas), agora, o diagnóstico que norteia a equipe econômica é o de que será preciso recuperar a capacidade de investimento do estado e os meios para tanto seriam fortalecer a sua capacidade de arrecadar. Por trás deste diagnóstico está implícita a ideia de que ampliar os investimentos públicos preservando a sustentabilidade fiscal do país requer esforços do lado tributário.

Este diagnóstico está baseando o conjunto de reformas que vêm sendo executada pelo governo como o voto de qualidade do Carf, a tributação de fundos offshore, taxação de apostas esportivas, entre outras medidas que prometem fortalecer financeiramente o Tesouro. Convém salientar que estas medidas fazem muito sentido do ponto de vista microeconômico, dado que corrigem distorções alocativas e distributivas. Entretanto, enquanto medidas orientadas a fortalecer financeiramente o Tesouro, a estratégia mostra limitações e um caráter puramente curtoprazista.

Um primeiro problema de sustentar o equilíbrio fiscal do país em medidas concentrada do lado dos impostos é a natureza tipicamente endógena que desta variável. Retornemos aos aspectos conceituais supracitados, a política fiscal tem a sua disposição dois instrumentos: os impostos e as despesas. Tais instrumentos são, por natureza, distintos, os impostos são endógenos, isto é, influenciados pelo estado da economia, fatores como inflação, dinâmica da atividade, ciclos de commodities, afetam o seu comportamento. A despesa pública por sua vez é uma variável estritamente exógena, que depende de uma decisão de gastar subordinada à uma lógica política. A mecânica do gasto público independe de disponibilidade prévia de recursos, quando o governo gasta, ele pode se financiar via: i) impostos; ii) endividamento público e, iii) senhoriagem (emissão de moeda). Ou seja, o gasto público é exógeno, porém altera um conjunto de variáveis endógenas no sistema econômico.

É preciso salientar que, a partir de um certo nível, a influência que o gasto público passa a exercer sobre as variáveis endógenas podem apresentar consequências sociais não desprezíveis. Por exemplo, seja uma despesa financiada exclusivamente por vias tributárias, isso tende a reforçar o perfil spend-tax da política fiscal. Já discuti isso em artigos anteriores, a expectativa de que a carga tributária pode aumentar para acomodar despesas públicas, reduz a renda permanente (no sentido de Friedman) dos agentes, isso pode ter efeitos de longo prazo sobre a poupança e o crescimento econômico. Por outro lado, o financiamento de despesas via endividamento público pode sinalizar futuros ajustes fiscais (inclusive via elevações de impostos), ademais, pressionar as pontas curta e longa das taxas de juros, elevando custo de rolagem e inibindo investimentos. Finalmente, o financiamento do gasto via senhoriagem pode levar a inflação a sair de controle.

No Brasil o gasto primário do governo tem assumido um comportamento cada vez mais obrigatório, que cresce em termos reais a uma média de 5,5% ao ano. As medidas tributárias supracitadas visam exatamente ampliar um pouco a margem para que o governo possa ampliar a fatia das despesas discricionárias no orçamento. Os esforços para ampliar a capacidade discricionária de gasto do governo são louváveis, porém o caminho precisa ser um pouco mais ambicioso, as medidas pelo lado tributário podem funcionar a curto prazo, porém se as despesas obrigatórias continuarem crescendo aos padrões atuais, em um eventual ciclo recessivo futuro, quando as receitas endógenas caírem, a preservação dos 70% previstos no NAF irão impor, novamente, um ajuste sobre as despesas discricionárias. Neste cenário o governo enfrentará o já conhecido dilema da política fiscal no Brasil, ajustar as contas em meio a uma recessão preservando a relação dívida/PIB? Ou, rifar mais uma regra fiscal visando suavizar um ciclo recessivo e resolver a posteriori o problema do ajuste?

Escapar deste dilema requer reformas que visem alterar a curva do gasto obrigatório, garantindo a capacidade de investimento público a longo prazo. Essa agenda não encontrou ecos em Brasília, pelo contrário, os esforços tributários que visam preservar o equilíbrio orçamentário, sobretudo na promessa de um déficit primário “zero” em 2024, tendem a se perder quando o espaço fiscal criado a partir de um instrumento endógeno flutuar em consonância com o estado da economia, ou ainda, quando decisões políticas encontrarem uma forma de preencher tais espaços por vias de novas despesa permanentes.

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