É o Teto de Gastos uma Cloroquina Fiscal?

Publicado no Jornal O Globo em 24/11/2022.

Por fim, isso poderia ser claro que nenhuma instituição irá (ou poderia, talvez) prevenir um governo, ou uma legislatura de incorrer em déficits, se é isso que estão determinados a fazer” (p. 406).

O trecho é do ensaio Fiscal Discipline and the Budget Process de Alesina e Perotti (1996). O objetivo deste artigo é abrir uma discordância respeitosa à coluna de Flávia Oliveira publicada no O Globo, em 18/11. No texto a autora refere-se ao teto de gastos como uma “ficção fiscal comparável à cloroquina no enfrentamento da Covid”, ou como um “mecanismo fracassado de controle das contas públicas”.

Começo meu contraponto salientando que no livro Retomada do Desenvolvimento, que organizei juntando outros 26 economistas a fim de formular propostas para o governo eleito, propus reformulações no teto. Livro este que terei imenso gosto de enviar à jornalista caso haja interesse. Saliento também, que sou favorável à uma ampliação do déficit de curto prazo voltado à ampliação do colchão social. Porém, há formas de fazê-lo preservando à estabilidade macroeconômica.

Em ensaio empírico recente, verifiquei que apesar das fricções de curto prazo, cada vez mais frequentes, as regras fiscais (dentre as quais o teto) exercem efeitos disciplinadores sobre a sustentabilidade fiscal. Em termos técnicos, agregados fiscais como receitas; despesas; dívida e resultado primário cointegram (mantêm tendencia comum de longo prazo), o que sugere certa eficiência das regras fiscais brasileiras que não devem ser tratadas como “cloroquinas”.

Saliento que o teto foi gestado em um contexto flagrantemente crítico, com 11 trimestres de queda no PIB, juros e inflação em 2 dígitos, estabilizando o país em pouco tempo.

Regras fiscais têm custos, entretanto, são fundamentais para preservar um bom equilíbrio macroeconômico dos países que as adotam. Não por outro motivo, o Fiscal Rules Dataset produzido por Davoodi et. al. (2022) e disponibilizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mostra que o número de economias que adotam regras fiscais saltou de 6 para 104 entre 1985 e 2021. Em working paper para a Comissão Europeia de 2012, Joaquim Casals narra a evolução de regras fiscais na Europa, salientando que a maior parte delas se dá sobre despesas.

A predileção de regras sobre gastos não se dá ao acaso. A questão fiscal é, como qualquer outro tema macro, um problema de otimização dinâmica e ajuste ao ciclo econômico. Uma regra como o teto é importante porque, mesmo diante dos furos, orienta expectativas, sendo fundamental para o sucesso desta transição de governos.

Resumindo, se há obstáculos à ação discricionária do presidente sobre a despesa, os agentes acreditam que apesar da necessidade de ampliar gastos hoje, a longo prazo o governo se comportará de acordo com a regra. O inverso é igualmente verdadeiro, na ausência de tais limites intertemporais aos gastos, os agentes esperam elevações futuras de tributos, dívida e inflação, assumindo posições defensivas já no presente.

Em democracias, o objetivo de permanência no poder dá a políticos o incentivo de gastar discricionariamente, mas não há o mesmo incentivo de anunciar a priori a fonte de financiamento. Isso está no cerne do problema do viés de déficit da política fiscal.

No livro Democary in Deficit: The Political Legacy of Lord Keynes de 1977, Buchanan e Wagner demonstram que déficits tornam o preço relativos de bens e serviços públicos menores no presente ante o futuro, o que reflete na avaliação positiva de curto prazo de políticos. Logo, para além de efeitos macroeconômicos estabilizadores, em contextos políticos permeados por assimetrias de informação sobre benefícios de curto prazo do gasto e custos de longo prazo dos ajustes fiscais, regras como o teto têm um efeito saudável sobre o processo democrático, delimitando o espaço do governo para seduzir o eleitor com gastos.

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