Retrocessos fiscais e democráticos

Publicado no Jornal Valor Econômico em 10/02/2022

O ano de 2022 nem bem deu seus primeiros passos e as polêmicas referentes ao orçamento já surgem no noticiário. A exemplo do que já havia acontecido em 2021, a polêmica esteve circunscrita num cabo de guerra entre executivo e legislativo acera de parte das despesas discricionárias da União. Os retrocessos fiscais vêm se acumulando ao longo do tempo: primeiramente, a má gestão da pandemia fez com que estímulos fiscais durassem muito mais tempo do que o necessário. Ademais, a necessidade de prolongar tais estímulos, somada ao choque dos precatórios e o apetite de políticos (de ambos os lados da praça dos poderes) por mais gastos em períodos próximos às eleições, levaram ao colapso o arcabouço de regras fiscais vigentes no país e que vinham sendo capazes de disciplinar o orçamento em uma perspectiva de longo prazo.

Porém, o retrocesso orçamentário de 2022 é diferente dos episódios anteriores que tinham conotações puramente macroeconômicas. Se antes, os problemas eram limitados à magnitude de estímulos fiscais no tempo, que poderiam custar desequilíbrios macroeconômicos sérios, porém corrigíveis com um novo pacto político. Dessa vez os retrocessos se dão na relação entre os poderes legislativo e executivo, o que dificulta a formação desse novo pacto.

Longe de ser o ideal, o relacionamento entre legislativo e executivo que vigorou nas últimas duas décadas, denominado por alguns como presidencialismo de coalizão, se calcava no agasalhamento de congressistas e seus indicados para cargos no executivo em troca de sustentação legislativa para suas pautas. Aspectos morais desse modelo à parte, ele não era o ideal, porém era funcional. Primeiro, porque pressupunha que o executivo tinha uma pauta e, portanto, a coalizão se formava com o objetivo de fazê-la andar no parlamento. Assistir trocas de cargo no executivo por apoio a projetos no legislativo não é o melhor dos mundos, mas é melhor do que assistir trocas de cargos no executivo por nada, ou pela blindagem do Presidente contra mais de uma centena de pedidos de impeachment que recaem sobre ele.

Ocorre que os retrocessos da vez não se dão apenas no que se refere à distribuição de cargos públicos no executivo, o que por si só já seria ruim. O que se vê de forma inédita no país é a terceirização da política fiscal para setores do legislativo. Isso é infinitamente mais grave, por várias razões: primeiro porque é atribuição constitucional do Congresso Nacional, segundo o artigo 48, IX e X, fiscalizar, controlar e julgar os atos e as prestações de contas do Presidente da República. Não faz muito tempo, o mesmo Congresso abriu e julgou processo de crime de responsabilidade contra uma Presidente, em assuntos pertinentes à própria gestão orçamentária. Quando, portanto, o Congresso que deveria fiscalizar e julgar os atos do executivo no que se referem à gestão fiscal do país, assume o controle da mesma, qual a legitimidade para impor sanções diante de eventuais erros ou ilegalidades que possam ocorrer no orçamento?

Mais importante ainda, quanto às responsabilidades jurídicas dos retrocessos fiscais em curso, recairão sobre o executivo ou legislativo? A delegação da política fiscal ao Congresso, impõe ao Brasil um nítido problema conhecido na literatura como “agente-principal”. Isso ocorre quando há um conflito de interesses entre a instância decisória de um determinado processo, o agente, e a instância afetada pela decisão, o principal. No caso do orçamento, as responsabilidades jurídicas pela má gestão fiscal, previstas na Constituição, na Lei de Responsabilidade Fiscal e na Lei 1079/50 (Lei do Impeachment) devem recair sobre quadros do executivo. Porém, no contexto atual o Congresso está impondo retrocessos orçamentários e se mantendo isento de responsabilidades.

Uma segunda hipótese de retrocesso, ainda mais perversa do ponto de vista dos incentivos que cria, é um eventual conluio entre executivo e legislativo visando a captura fiscal. Como dito, as responsabilidades jurídicas de problemas decorrentes da má gestão orçamentária, devem recair sobre o executivo. Porém, como a fiscalização e o julgamento em última instância cabe ao legislativo, um acordo político tácito pode blindar os primeiros das responsabilizações, pelo menos a curto prazo. A consequência de um conluio desta natureza são os sinais que emitem para: i) o próximo Presidente da República e o Congresso eleito; ii) para governadores e prefeitos que podem sentir-se incentivados descumprirem normas fiscais sob a crença de que a fiscalização e responsabilização por erros serão tolerados.

Regras fiscais para o seu bom funcionamento, dependem de instrumentos de enforcement que obriguem o seu cumprimento. Desde a redemocratização, o país criou boas regras capazes de disciplinar a gestão fiscal, muitas delas normatizadas na própria carta magna, outras contidas em legislação infraconstitucional. O país não criou, no entanto, meios para que tais regras sejam cumpridas. O impeachment de 2016 aconteceu muito mais por uma rivalidade pessoal entre os presidentes da Câmara e da República do que pelo apego às melhores práticas fiscais. Hoje os descalabros fiscais ocorrem à luz do dia e não há a quem recorrer. É preciso discutir um novo modelo de corresponsabilidades onde o Congresso, na figura de seus presidentes e relatores orçamentários, responda por seus atos e omissões na área fiscal.

Ademais o retrocesso mais grave não vem da macroeconomia. É preciso lembrar que eleições se avizinham e o manuseio de políticas macroeconômicas objetivando a sobreposição do ciclo econômico sobre o ciclo eleitoral é uma evidência consagrada da literatura. Onde há eleições, há incentivo para que políticos ampliem gastos públicos e cortem impostos visando a reeleição ou a eleição de um sucessor aliado, deixando os custos disso para o mandato seguinte. A tendência desta eleição, diante dos retrocessos fiscais supracitados e da captura do orçamento discricionário por setores do legislativo, é a assimetria de forças entre os que exercem mandatos vis a vis os que não exercem. Isso cria uma distorção no processo democrático, porque uns terão dinheiro público para distribuir em seus redutos, sem se preocuparem com as consequências macroeconômicas disso a médio prazo, enquanto outros não terão e, portanto, concorrerão em desvantagem.

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