O Imposto, o Gasto e a Lei

Publicado no Jornal Valor Econômico em 01/10/2021

Recentemente uma questão importante tem sido levantada no âmbito das dificuldades fiscais da economia brasileira, a excessiva constitucionalização do quadro normativo das finanças públicas. Em entrevista recente ao Valor, Pérsio Arida tocou nesse ponto e apontou uma dificuldade de todos os governos que se alternaram nos últimos 30 anos, trata-se de legislar sobre finanças públicas em um país cujas regras são cristalizadas na Constituição. Regras fiscais e não fiscais podem ser normatizadas via Constituição, mas também podem ser normatizadas via legislação infraconstitucional como Leis Complementares (LCs) e Medidas Provisórias (MPs).

Não necessariamente uma norma precisa estar contida na carta constitucional para ser eficaz. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que sobrevive já há 21 anos no quadro normativo brasileiro, é um exemplo de regra fiscal que funcionou bem durante todo esse tempo. Já a Regra de Ouro, contida no artigo 167 da Constituição Federal e que veda o financiamento de gastos correntes via emissão de dívida é constantemente burlada via créditos suplementares aprovados no Congresso Nacional. Uma rápida observada nos dados da execução financeira do Tesouro e se vê que a dívida pública se expandiu fortemente na última década em simultâneo com a redução dos investimentos públicos.

Também na Constituição foi instituído o teto de gastos públicos, em vigência no Brasil desde 2017. Uma boa regra acrescentada à Constituição cuja motivação era impor disciplina aos gastos primários da União. Desde 2020, no entanto, o teto existe in lege sed non in facto (do latim “na lei, mas não de fato”). Isso porque em 2020 sob os efeitos da calamidade pública causada pela pandemia, o Congresso Nacional aprovou uma outra Emenda Constitucional (EC) 10/20 denominada orçamento de guerra. Essa norma constituía um orçamento paralelo, podendo excepcionalmente e pelo prazo de vigência da calamidade, ser financiado por títulos do Tesouro adquiridos pelo Banco Central (o que é vedado pela LRF) que fariam face aos gastos da pandemia. Até 31/12/2020, quando expirou o decreto de calamidade pública, o governo federal teve dois orçamentos, o orçamento primário sujeito ao teto e o orçamento de guerra extra teto.

Já em 2021, o executivo não tinha sua Lei Orçamentária Anual (LOA) aprovada no Congresso, uma situação absolutamente inusitada. Sem LOA até abril deste ano, o governo federal só podia manter o fluxo de pagamento de despesas de caráter continuado, as demais despesas dependentes de programação financeira não podiam ser executadas e a máquina pública esteve próximo de parar. O principal problema que inviabilizou a aprovação da LOA foi um impasse político causado em torno do teto de gastos. Isso porque inúmeros serviços públicos dependiam da liberação de despesas discricionárias para manter seu funcionamento, porém, a base de apoio do governo no Congresso pressionava pelo pagamento de emendas parlamentares destinadas às suas bases locais. Como solução para o impasse, ventilou-se a proposição de um PEC “fura-teto” para conciliar os interesses dos parlamentares que precisam atender suas bases, manter o funcionamento mínimo de serviços públicos e livrar o Presidente e sua equipe econômica de crimes de responsabilidade.

Nesse momento, tenta se criar para o exercício fiscal de 2022 uma solução para o pagamento dos precatórios. Não se sabe, ainda, o que surgirá das negociações entre executivo e legislativo em Brasília. O que se espera é que o governo pague uma parte dos precatórios em 2022 e escalone o pagamento do restante para alguns anos à frente. Essa seria, novamente, uma solução extra teto para a crise dos precatórios. O governo respeitaria o teto em 2022, porém jogando para frente parte das despesas que deveriam ser pagas neste exercício fiscal. Essa medida seria a constitucionalização das pedaladas fiscais que em outros tempos ceifaram mandatos presidenciais.

Voltando ao problema do orçamento e da lei, Gustavo Franco escreve em seu novo livro Lições Amargas “A existência de um “teto constitucional” e de direitos constitucionais ao aumento de despesas é um convite ao impasse” (p 119). No Brasil, as regras fiscais são colocadas na Constituição porque outras regras não fiscais que promovem o crescimento inercial do gasto público também estão na carta magna. Porém, os esforços políticos e legislativos para rever, de tempos em tempos, normas constitucionais pensadas para disciplinar o gasto público, ocorrem em frequência muito mais elevada em relação aos esforços políticos e legislativos que visem revisar as regras não fiscais que pressionam o gasto público para cima.

Uma outra assimetria se vê na relação entre a lei e os impostos. No Brasil, como argumentado, os gastos estão na Constituição, porém os impostos podem ser aumentados por legislação infraconstitucional. Há inúmeros episódios de reajustes tributários nos últimos 25 anos de expansão tributária por vias de Leis Complementares e até Medidas Provisórias, a mais recente foi a elevação, dias atrás, do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) regulamentado pelo decreto 10.797/21.

O problema de regulamentar na Constituição, questões fiscais (e não fiscais) trazido por Arida faz todo sentido. Emendas Constitucionais dependem de maioria qualificada no Congresso para sua aprovação, bem como seu trâmite exige passagem por comissões temáticas o que acaba atrasando o processo legislativo. Inclusive, são passíveis de serem revistas pelo Supremo Tribunal Federal após sua aprovação legislativa.

Mas há um problema adicional, como os gastos são normatizados na Constituição e os impostos o podem ser via legislação infraconstitucional, diante de impasses fiscais como déficits persistentes, há sempre o incentivo para que a solução envolva aumentos de impostos. Não por outro motivo a carga tributária se elevou tanto em percentual do PIB nos últimos 25 anos e deve continuar se elevando nos próximos anos. É preciso corrigir essa assimetria entre os impostos, os gastos e a lei.

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