CPI da Previdência é uma falácia

Uma das mais polêmicas questões nacionais, que se põe no debate público a pelo menos duas décadas e meia, diz respeito à reforma da previdência. No presente momento, de aguda crise fiscal flagrante no número de R$159 bilhões (ou 2,54% do PIB) de déficit primário do Setor Público previstos para 2017, somado ao avanço da dívida bruta que saltou de 51% em 2013 para 81% do PIB em janeiro de 2018. Tida como a grande causadora da crise fiscal supracitada, as contas da previdência social correspondem a pelo 45% da despesa primária do governo federal. Isto significa que, para zerar o déficit do setor público e restabelecer um superávit primário de no mínimo 1,2% ao ano, serão necessários uma economia de despesas da ordem de R$239 bilhões aproximadamente. Dado este diagnóstico inicial, duas perguntas se fazem necessárias: 1° As contas da previdência são superavitárias ou deficitárias? E, 2° Seria viável restabelecer uma poupança da ordem de R$239 bilhões, com base apenas nos outros 55% das despesas primárias do governo central?

Não é objetivo deste artigo, responder a 2° questão, cabe as democracias decidirem por meio do processo eleitoral, as prioridades de composição de despesas públicas que suas populações desejem receber mais ou menos, e se eventualmente, a maioria dos brasileiros demandam regras previdenciárias mais generosas, alternativas como elevações de carga tributária, ou desmonte de serviços públicos básicos como educação, saúde, assistência social, meio ambiente, defesa nacional e justiça, certamente se farão necessários. O objetivo deste artigo, portanto, consiste em responder a segunda questão. Diante disso, existem duas versões buscando protagonismo no debate, a primeira trata-se da versão oficial, na qual o governo defende a reforma alegando um déficit da previdência social e, a segunda, proposta por uma CPI do Senado Federal leia sobre aqui, que defende que a previdência é superavitária.

O supracitado relatório, de autoria do Senador Hélio José (PROS – DF), acusa o governo de “fazer terrorismo com dados irreais” sobre a situação das contas da previdência social, alega que: 1° existe um problema de queda cíclica das receitas da previdência, causada pelo aumento do desemprego e queda na renda, e, 2° culpa a inadimplência de grandes empresas que, podem custar mais que R$450 bilhões aos cofres públicos, 3° Atribui parte do déficit da previdência a isenções fiscais como o SIMPLES Nacional e o Micro Empreendedor Individual (M.E.I.), 4° Culpam ainda a Desvinculação das Receitas da União (D.R.U.) por contingenciar receitas da previdência para fazer superávit primário. Na visão do relatório portanto, não há no Brasil  problema de fluxo de despesas da previdência social veja um resumo do relatório da CPI do Senado aqui.

Os pontos não são de todo falsos, mas partem de alguns diagnósticos simplificadores, distorcem ou ignoram fatos relevantes e partem de imprecisões teóricas. O primeiro ponto do relatório que pode ser considerado inconsistente, diz respeito a acusação que se faz ao governo de difundir informações falsas, com o objetivo de causar pânico quanto a trajetória da previdência, ora, por que razão um governo gostaria de causar pânico desnecessário para realizar uma reforma impopular? O relatório desconsidera, no entanto, que a Fazenda e o Planejamento, não tem autonomia para determinar a norma de divulgação dos dados fiscais e, consequentemente, da previdência. Em linhas gerais, a normatização que estiliza a divulgação dos dados fiscais é feita pelos anexos da lei 4320/64. O que o relatório faz para auferir superávit onde há déficit, é considerar todas as receitas da Seguridade Social (que incluem além de previdência, também saúde e assistência social) previstas no art. 195 da Constituição Federal, para auferir sobras exclusivas nas contas da previdência, ou seja, se isto for verdade, para custear gastos crescentes na previdência, seriam necessários cortes na mesma proporção na saúde e assistência social. O que o relatório desconsidera é que as contas da Seguridade Social também são deficitárias, como mostra a Tabela ao lado com dados até outubro de 2016.

Além disso, o relatório da CPI do Senado atribui a queda de arrecadação da previdência, causada pelo momento crítico pelo qual passou a economia brasileira e seus impactos sobre a geração de emprego formal, para configurar como esporádico o estrangulamento do caixa das contas da previdência. Esta abordagem, no entanto, é passível de crítica por duas razões:

1° por que inverte a causalidade entre o panorama fiscal e a crise. Segundo os autores do relatório, a crise econômica agravou pela queda das receitas o panorama fiscal, quando na verdade, a crise fiscal alicerçada no crescimento das despesas públicas obrigatórias, aprofundou a crise devido as expectativas de insolvência do setor público, há aí, portanto, uma inversão de causalidade.

2° A queda cíclica da economia brasileira causou queda real da arrecadação da previdência desde 2014, mas este fenômeno é restrito, no entanto, ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS) dos trabalhadores urbanos, que foram a categoria atingida pelo desemprego. É importante ressaltar, que o RGPS, no entanto, já era deficitário antes de 2014, como se vê no gráfico 01 abaixo, em grande medida graças ao desempenho do RGPS dos trabalhadores rurais, historicamente deficitário pela ausência de contribuições. A reforma da previdência proposta pela PEC 287, prevê mudanças tanto no RGPS, quanto no Regime Próprio (Previdência Pública), que também é deficitária em R$77,1 bilhões. Juntos, o RGPS e o RPPS somaram um déficit em 2016 de R$229 bilhões.

Gráfico 01

 

O relatório aponta ainda dois fatores adicionais, a inadimplência de empresas devedoras da ordem de R$450 bilhões, o que este valor apresenta juros e encargos que seriam amortizados pelos REFIS propostos pelo próprio governo, e que parte destas empresas quebraram neste período, pelos mesmos fatores cíclicos defendidos pelo próprio relatório como causa da queda na arrecadação, o valor tido como recuperável é de R$170 bilhões, ou seja, abaixo ainda do déficit total da previdência de R$229. Neste item específico, o relatório produz uma imprecisão teórica, aponta como causa do déficit a inadimplência quantificada num estoque de débitos, enquanto a causa verdadeira do problema previdenciário, trata-se do fluxo de receitas e despesas previstas, dado a súbita mudança do perfil demográfico brasileiro, no horizonte de uma geração. Em outras palavras, ainda que toda inadimplência fosse revertida em favor do Tesouro, isso atenuaria o problema do déficit para 1 ano, retornando o déficit no período imediatamente seguinte. Previsões demográficas consistentes apontam a inevitável tendência ao envelhecimento da população brasileira no horizonte de 25 anos.

Finalmente, o relatório culpa a D.R.U, como culpada pelo déficit previdenciário, já que consiste na retirada de receitas próprias da previdência, ou da seguridade, para serem gastas em outras áreas. Do ponto de vista da gestão financeira do Estado, a D.R.U é extremamente bem vinda, dada a rigidez orçamentária de quase 90% do orçamento que crescem obrigatoriamente frente a vinculações constitucionais previstas. No entanto, como se pode ver tanto na Tabela,  quanto no Gráfico 01 acima, na prática a D.R.U não mudou a configuração orçamentária da União do ponto de vista das despesas, pelo contrário, as rubricas que continuam crescendo são exatamente as obrigatórias, financiadas principalmente pela expansão da dívida pública e sacrificando as despesas discricionárias (principalmente os investimentos públicos).

Por estes motivos, é preciso defender a reforma da previdência, e refutar as informações contidas no relatório do Senador Hélio José (PROS – DF), bem como as proposições de elevação do teto constitucional, e criação de alíquotas maiores para empresas que empregam menos no país. A reforma da previdência, combate frontalmente privilégios de setores elitizados e é imprescindível para que o país goze de estabilidade macroeconômica, podendo ingressar numa nova agenda de crescimento e desenvolvimento com justiça social e combate as desigualdades.

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