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Publicado no Jornal Valor Econômico em 27/09/2024
A história da política fiscal no Brasil tem sido marcada por descontinuidades. Em 2024, o regime fiscal caracterizado pelas metas primárias completou 25 anos, sendo que, de 2014 para cá o Brasil tem operado sistematicamente em déficits. Após a crise de 2014, que se mostrou como um dos mais duradouros e graves ciclos recessivos da história, a política fiscal do país tem sido calibrada a partir de um tênue equilíbrio entre a dívida pública e o crescimento do PIB. Em suma, a exemplo da política monetária, a política fiscal brasileira tem sido orientada por um duplo mandato.
Do ponto de vista da dívida pública, a gestão da política fiscal está calcada em tentar evitar que este agregado assuma uma trajetória explosiva. Esse objetivo mostra que uma estratégia de redução do endividamento público no país está ausente da pauta política nos governos que se sucederam desde 2010. Em outras palavras, ao menos no que se refere ao mandato da estabilização da dívida pública, a política fiscal tem sido gerida a partir de um fio de navalha, preservando uma expansão da dívida pública em parâmetros considerados “aceitáveis” no curto prazo.
O problema dessa estratégia é que essa gestão da expansão da dívida já parte de um valor inicial da dívida/PIB bastante elevada para os padrões históricos, com isso, a margem para elevações desse endividamento é baixa. Ademais, a dívida pública não é resultado apenas das intenções da política fiscal, na prática, ela expressa também o que se passa no front da política monetária, e absorve, ainda, as expectativas de seus financiadores quanto a solvência do governo. Ou seja, enquanto a política monetária expressa a dimensão da ponta curta da taxa de juros e seus efeitos sobre o endividamento público, as expectativas dos agentes refletem a ponta longa da estrutura a termo da taxa de juros.
Ao se olhar para as condições de política monetária no último ano, um afrouxamento foi observado nas contínuas quedas da Selic que partiu de um patamar de 13,75% ao ano em julho de 2023 para os atuais 10,5%. Esse afrouxamento da política monetária não se transmitiu para o custo de rolagem da dívida bruta brasileira, que segue relativamente estável em torno dos 11% ao ano no mesmo período. Isso implica que há elementos para além da política monetária que pesam nos fatores expectacionais dos detentores da dívida pública.
Em seu livro “Fiscal Policy under Low Interst Rates” Oliver Blanchard disserta sobre tais fatores expectacionais ao evidenciar a existência de equilíbrios múltiplos na relação entre endividamento público e seu custo de rolagem. A possibilidade de múltiplos equilíbrios supõe a possibilidade de que a economia migre de um bom para um mau equilíbrio sem que mudanças no estado da economia sejam verificadas. Traduzindo para termos menos técnicos, agentes econômicos podem mudar sua percepção de risco de default da dívida pública, mesmo que seu nível (ou trajetória) apresentem grandes mudanças. Isso porque essa percepção de risco está condicionada mais a expectativas subjetivas, do que à dados objetivos da economia. Se essa percepção de risco é alterada, mesmo que o estado da economia não apresente grandes alterações, os detentores da dívida pública podem cobrar um prêmio de risco maior para rolarem a mesma.
Sob essa perspectiva a administração da política fiscal no “fio da navalha” do endividamento público traz inúmeros riscos associados. Isso porque nenhuma técnica disponível pode prever uma mudança da percepção dos agentes. Regras fiscais têm um importante papel a cumprir a esse respeito, uma vez que elas podem atenuar o problema da inconsistência dinâmica dando um horizonte de previsão sobre o padrão de longo prazo da política fiscal. Porém, para que elas possam desempenhar satisfatoriamente esse papel, não basta que elas sejam propostas e aprovadas meramente como uma carta de intenções, seu cumprimento ao longo dos anos importa para tonar a política fiscal dinamicamente consistente.
Como dito no início desse artigo, de 25 anos para cá o Brasil encontrou o seu regime cambial e o seu regime monetário, mas ainda tenta encontrar seu regime fiscal. O regime de metas primárias que funcionou bem até meados da década de 2000, mas sucumbiu sobre a crise das pedaladas fiscais na década seguinte. O Novo Regime Fiscal que estipulava um teto na Constituição visando congelar o crescimento real da despesa primária, durou por pouco tempo e colidiu com a morosidade de reformas e com as necessidades de crescimento real do gasto. Algumas dessas necessidades de ampliação real de despesas eram meritórias, outras eram apenas manutenção de privilégios.
A Regra de Ouro prevista no artigo 167 da Constituição, que prevê que o governo só pode se endividar contraindo despesas de capital não é observada há muito tempo, o endividamento saltou nos últimos 15 anos, enquanto o investimento público claudica. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é a que performa melhor, orienta bem a conduta fiscal de entes federados, mas é importante salientar que essa é uma regra muito mais procedimental do que uma âncora fiscal. Até por essa característica a LRF ainda continua de pé.
Após 25 anos tentando encontrar um regime fiscal sustentável, a política fiscal brasileira está agora na fase do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Essa regra, que completou um ano no último mês, traz alguns aspectos interessantes e outros arriscados. Dentre os interessantes salienta-se a possibilidade de expansão do gasto real atrelado ao comportamento das receitas. Se isso estiver balizado por algum senso de prioridade em Brasília, é possível que essa expansão real do gasto seja direcionada para fortalecer serviços público essenciais, ao invés de privilégios. Dentre os elementos arriscados segue a sua excessiva flexibilidade, a flutuação da meta primária entre bandas certamente exacerbará o viés de déficit da política fiscal doméstica, com o limite inferior se tornando o alvo da política. Se isso for verificado, o sistema de âncoras fiscais brasileira continuará funcionando mal, e a inconsistência dinâmica da política macroeconômica persistirá.
As várias dimensões do NAF estão submetidas a decisões políticas. Na verdade, o problema fiscal brasileiro verificado nesses 25 anos é um problema muito mais de economia política do que de arranjo institucional. A discricionariedade pela qual a política fiscal foi submetida no último quarto de século é política. Sem resolver a política, a inconsistência dinâmica da política deverá persistir por muitos anos.
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