Risco de Desequilíbrio Fiscal

Publicado no Jornal O Globo em 07/06/2024

No próximo dia 31/08 completar-se-á um ano de vigência do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), a regra aprovada em substituição ao Teto de Gastos (TG) viu a sua primeira modificação ocorrer antes de completar um ano. A história recente das regras fiscais brasileiras tem sido de descontinuidade, o regime de metas primárias de 1999 sofreu sua primeira alteração em 2006, quando modificaram o método de apuração de percentual do PIB para valores nominais, isso pavimentou o caminho para as pedaladas fiscais observadas na primeira metade da década de 2010.

A piora do padrão da política fiscal observada naquela época resultou na grande crise de 2014 a 16, caracterizada por uma expansão sem precedentes do endividamento público. O descumprimento das regras fiscais e suas consequências produziram o impeachment da Presidente. Esse episódio sinalizou amadurecimento democrático demonstrando que no Brasil o mau uso do dinheiro público tem consequências políticas e que a política fiscal deveria estar submetida a regras. Nesse contexto, surgiu o TG e com ele, a expectativa de que a sustentabilidade fiscal ganhasse status de bem público, tal qual havia acontecido décadas antes com a estabilidade monetária obtida pelo Plano Real. Não foi isso o que aconteceu, o TG performou bem entre 2017 e 18, estabilizando a relação dívida/PIB, porém já em 2019 seus primeiros sinais de esgotamento vieram à tona.

Em um contexto de fixação da despesa primária limitada na mesma Constituição que previa o crescimento involuntário dela, o impasse político seria questão de tempo. Logo, as despesas obrigatórias assumiram quase que a totalidade do orçamento primário reduzindo o espaço das discricionárias. Porém, com um agravante, a partir do final da década o Congresso expandiu a sua influência sobre o orçamento por vias das emendas impositivas.

Com o advento da pandemia em 2020 e o fracasso do governo em conduzir as medidas de isolamento necessárias para estabilizar as infecções, um esforço fiscal sem precedentes foi necessário para acomodar o choque. Diante das restrições impostas pelo TG, a alternativa foi o Orçamento de Guerra que criou um novo orçamento fora do teto. Na saída da pandemia, com o avizinhamento das eleições, o incentivo para novos furos no TG estava posto, uma sequência de PECs de elevado impacto fiscal foram aprovadas. Duas heranças foram deixadas para o presente: i) as despesas com precatórios que contabilizavam R$18,5 bilhões em 2022 saltaram para R$102 bi em março de 2024 e ii) o Bolsa Família (BF), saltou de R$95 para R$172 bilhões no mesmo período. Ambas as despesas podem ser consideradas obrigatórias, os precatórios por decisão judicial e o BF porque cortes imporia um elevado custo eleitoral ao governo que cortasse.

Ademais, as supracitadas PECs contribuíram para a desmoralização do TG e sua substituição pelo NAF. Isso produziu uma armadilha adicional, a possibilidade de expansão real do gasto (vinculado às receitas) foi o gatilho para o início de uma corrida das diferentes carreiras do serviço público em busca de recomposição salarial após anos de perdas reais acumuladas, isso produz efeitos também sobre a previdência. Em outras palavras, a ausência do TG escancarou um conflito distributivo no serviço público (relativo aos três poderes) de forma que o reajuste dado a um segmento será legitimamente reivindicado pelos demais exacerbando as pressões políticas.

O resultado é uma situação fiscal de curto prazo ruim, mas não dramática. Atua como elemento distensionador o comportamento da arrecadação. As receitas da União vêm surpreendendo positivamente desde 2022 e se encontram em patamar elevado. Têm contribuído para isso a recuperação cíclica da economia pós-pandemia e a pauta arrecadatória empreendida pela equipe econômica. Os vetores cíclicos mostram seus primeiros sinais de esgotamento, a pauta arrecadatória requer um elevado esforço legislativo de um Congresso que influencia na política fiscal, sem estar sujeito aos instrumentos de enforcement das regras fiscais vigentes, isso indica que a arrecadação pode se deteriorar a qualquer momento e escancarar o problema fiscal.

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