O Fiscal, o Monetário, o Institucional e a Inflação

Publicado no Jornal Valor Econômico em 05/02/2024

Recentemente, o IBGE divulgou o IPCA referente ao ano calendário de 2023, o dado acumulado apontou para uma inflação de 4,62%, um pouco abaixo do teto da meta que para 2023 é 4,75%. Uma melhora significativa neste indicador pôde ser observada no último ano, visto que em dezembro de 2022 a inflação foi visivelmente maior (5,79%) e maquiada pelo elevado grau de artificialismo devido aos subsídios tributários dados a combustíveis, o que mantiveram os núcleos de inflação próximos a 9% naquela época, muito acima do índice cheio. Hoje, para além do IPCA dentro da meta, observa-se núcleos de inflação mais bem comportados e próximos do índice cheio.

Ainda é preciso convergir o IPCA para o centro da meta que é de 3,25%. Porém há uma inequívoca melhora nos dados recentes da economia brasileira. Essa melhora se deve sim à operacionalização da política monetária, atrelada a outros fatores. No começo do processo inflacionário em meados de 2021 havia muitas dúvidas sobre a magnitude e persistência do choque, alguns economistas respeitáveis naquele período sugeriram que se tratava meramente de um estrangulamento em cadeias de suprimento que se dissipariam tão logo as atividades produtivas normalizassem na saída da pandemia. Não foi isso que aconteceu e o Banco Central do Brasil (BCB) iniciou, à revelia das críticas, um movimento de contração monetária já naquele período, bem antes de outros bancos centrais mundo afora que passaram meses andando atrás da curva.

O processo inflacionário brasileiro, embora iniciado por estrangulamentos de oferta na saída da pandemia, foi bastante agravado pela piora do quadro fiscal observado com o avizinhamento das eleições. Isso serviu para desencadear um intenso e persistente processo de desancoragem das expectativas de inflação para o horizonte relevante de tempo. O BCB permaneceu firme buscando seu objetivo de convergir a inflação para a meta com os instrumentos que tinha.

Como é de conhecimento geral, os BCs modernos têm à sua disposição dois tipos de instrumentos de política: o convencional é a taxa de juros de curto prazo, os não convencionais são seus comunicados, atas, forward guidance e até os controversos quantitative easing. No Brasil, a fim de convergir a inflação de volta para a meta, a autoridade monetária se valeu tanto da política monetária convencional, praticando elevações da taxa Selic até as proximidades da eleição de 2022, quanto os instrumentos não convencionais, publicando atas e comunicados em tom hawkish até meados de 2023 durante embate com a ala ideológica do atual governo.

O fato de o BCB ter elevado a Selic poucas semanas antes do primeiro turno e ter se posicionado em tom duro diante do bombardeio ideológico no início desse ano mostra maturidade institucional. Nesse sentido, a supracitada desinflação em curso não pode ser creditada exclusivamente na conta do BCB. O fato de o Congresso Nacional ter aprovado, em 2021, uma boa lei que garantisse autonomia operacional à autoridade monetária foi fundamental para blindar, via mandatos, seu presidente e diretores da discricionariedade política corriqueira na história brasileira.

Algumas palavras devem ser ditas também sobre a política fiscal. É bem verdade que a crua leitura dos dados não sugere nenhuma melhora substancial em relação ao que o país apresentava no final de 2022. O déficit primário será esse ano superior a 1% do PIB e o endividamento público cresceu, tanto no conceito bruto, quanto no líquido ao longo de 2023. Porém essa piora de curto prazo dos dados fiscais vem se dando diante de sinais advindos da equipe econômica no sentido de equalizar o fiscal a médio prazo.

Em outras palavras há uma expectativa de melhora fiscal futura, ancoradas em medidas como: i) a antecipação do arcabouço para o primeiro semestre do ano passado; ii) o encaminhamento de uma pauta arrecadatória com revisões de incentivos que fazem muito pouco sentido microeconômico; além da iii) própria reforma tributária e; iv) a perseguição (até aqui vista como sincera) do déficit primário zero para o exercício fiscal de 2024. O encaminhamento dessas medidas ao longo de 2023 sinalizaram uma disposição de se solucionar gradualmente o problema fiscal brasileiro que já se estende há mais de uma década.

Comecemos pelo Novo Arcabouço Fiscal (NAF), ao longo de 2023 ocupei esse espaço na coluna de opinião apontando algumas nuances dessa regra que veio em substituição ao extinto Teto de Gastos. Sustento ainda todas as posições daqueles artigos. Entretanto, é inegável que a condução da política monetária é bastante facilitada diante de uma regra que promete disciplinar o frenesi de discricionariedade fiscal que vinha em curso no Brasil desde a saída da pandemia. O NAF não é uma regra perfeita, porém contribui mais para um cenário macroeconômico previsível de curto prazo do que o contexto anterior a 2023 caracterizado pelo abuso do uso de emendas constitucionais de elevado impacto fiscal.

O cumprimento a médio prazo dos parâmetros do NAF serão fundamentais para a manutenção de equilíbrio macroeconômico com inflação e juros reais baixos. Sobre isso, no entanto, ainda pairam desconfianças, sabendo disso a equipe econômica parece empenhada em zerar o déficit fiscal de 2024. Se isso acontecer, terá dado uma grande contribuição de fundamentos da economia brasileira. O país vem apresentando déficits primários desde 2014, porém o quadro de deterioração é até mais antigo do que isso, remontando ao período cujos superávits eram conquistados à custas de pedaladas.

O Brasil tem em 2024 a chance de romper com esse passado de discricionariedade fiscal que trouxe elevado custo social e produziu uma década perdida. Sabendo disso, e cacifada por bons resultados macroeconômicos de curto prazo, tais como a supracitada desinflação, a equipe econômica atua politicamente para viabilizar sua pauta arrecadatória. Algumas medidas como o voto de qualidade do Carf, a tributação dos fundos exclusivos e offshores já tiveram encaminhamento. Agora parecem empenhados em desfazer incentivos tributários incidentes sobre a folha salarial. Tomara que sejam bem-sucedidos.

Ainda assim, as desconfianças persistem devido ao ajuste fiscal em curso se concentrar quase que exclusivamente pelo lado das receitas, que conforme escrevi no meu último artigo nesse espaço flutuam segundo o estado da economia. Ainda se espera um posicionamento mais contundente dessa equipe econômica sobre qual a estratégia para lidar com o gasto, particularmente obrigatório.

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