Arcabouço Fiscal, Novos Instrumentos, Velhos Impasses

Publicado no Jornal Valor Econômico em 18/04/2024

“…é preciso ser claro que nenhuma instituição poderia prevenir um déficit, se é isso que um governo ou legislatura estão determinados a fazer” (Alesina e Perotti, 1996, p. 406)

No último dia 16/02 o Valor noticiou a revisão da meta primária para os exercícios de 2025 e 26. No bojo da concepção do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) o governo propôs um modelo flexível para as metas primárias que poderiam flutuar entre bandas de 0.25% do PIB para mais e para menos. Como argumentado em artigos anteriores, esse padrão de metas flexíveis entre bandas é inspirado no Regime de Metas de Inflação (RMI) que funciona bem no Brasil há 25 anos. Porém, uma regra que performa bem para uma política, pode não funcionar adequadamente para outra, devido às especificidades. Vamos a elas.

A começar pela disponibilidade de instrumentos à disposição da autoridade, a política monetária possui um único instrumento – a taxa nominal de juros – ao passo que a política fiscal possui ao menos dois instrumentos: o gasto e o imposto. Do ponto de vista empírico, a distinção dos instrumentos fiscais interessa para o resultado de política, pois seus efeitos em termos de impactos no PIB (o multiplicador fiscal) e no endividamento público são bastante heterogêneos. Mas essa não é a única especificidade, é preciso fazer considerações acerca do grau de autonomia de cada política. Desde o Plano Real, em 1994, a autoridade monetária no Brasil usufruiu de grande autonomia, em 2021 essa autonomia ganhou contornos legais com a aprovação da autonomia operacional do Banco Central no Congresso que blindou a política monetária da discricionariedade oriunda interesses político-eleitorais.

A política fiscal não apresenta a mesma autonomia. Uma vez que ela é executada por vias de um orçamento concebido no poder executivo e aprovado no legislativo, sua submissão à lógica político-eleitoral é automática. Em termos coloquiais, políticos elaboram o orçamento, o aprovam e o executam o que escancara um padrão de constante discricionariedade que Buchanan e Wagner (1977) chamam de viés de déficit. Os efeitos desse viés nas democracias constitucionais é o acúmulo de déficits na forma de endividamento público, resultando na transferência intergeracional de riqueza, pois segundo a tradição de modelos de gerações sobrepostas, déficits hoje devem pagos por impostos recaídos sobre as gerações futuras.

Para atenuar tais efeitos, a partir dos anos 1980 regras fiscais passaram a ser incorporadas no radar da política econômica. Desde então, inúmeras controvérsias envolvendo-as surgiram. Em primeiro lugar qual regra fiscal? Como argumentado anteriormente, a política fiscal possui ao menos dois instrumentos, o imposto e o gasto que se analisados em conjuntamente produzem um resultado primário. Portanto, as regras podem incidir sobre impostos, gastos, resultados primários/operacionais ou dívida pública. A extensa literatura envolvendo o tema não é conclusiva sobre a superioridade de um instrumento em relação aos demais. Além disso, a adoção de um tipo de regra numa localidade pode funcionar melhor do que em outra, não há um padrão geral e as especificidades importam para o desempenho.

Uma outra polêmica envolvendo regras fiscais diz respeito ao seu descumprimento. Isso porque o governo austero não precisa de regras para lhe disciplinar, já o governo perdulário não as cumpre. Durante algum tempo se acreditou que a adoção de regras demasiadamente rígidas poderia impor disciplina fiscal mesmo a governos perdulários. Porém, isso não funcionou devido à existência da ilusão fiscal. Puviani (1903) define ilusão fiscal como uma miopia da sociedade que a impede de controlar adequadamente o uso dos recursos públicos e o tamanho do governo. Diante disso, governantes se valem dessa miopia também visando burlar regras fiscais.

No Brasil, desde 1999 inúmeras regras fiscais se valeram de diversos instrumentos e foram instituídas, descumpridas e, em alguns casos, substituídas. O Regime de Metas Primárias (RMP) data de janeiro de 1999 e em 2006 houve sua primeira adaptação quando o governo de então optou por perseguir metas apuradas em valores nominais ao invés das antigas metas percentual do PIB. Isso parece ser mera adaptação formal, porém abriu caminho para a crise das pedaladas fiscais anos mais tarde. Apenas para refrescar a memória, as pedaladas consistiram num clássico exemplo de ilusão fiscal em que o governo fechava o resultado primário de um exercício fiscal obrigando bancos oficiais a pagarem políticas públicas na ponta, sem o devido repasse do Tesouro no tempo hábil.

Após as pedaladas, o Brasil mergulhou em déficits fiscais consecutivos que duram 10 anos – exceção foi o ano de 2022 cujo superávit se deu à custa de truques como a postergação de precatórios para os exercícios fiscais posteriores. Com a crise do antigo RMP, uma regra ainda mais rígida foi proposta e aprovada em 2016, o famigerado Teto de Gastos previa o congelamento real da despesa primária por 10 anos, podendo ser renovado por outros 10 anos. O teto era uma regra simples, incidente sobre um único instrumento (o gasto primário), porém tida como rígida. Em um contexto de crescimento compulsório do gasto obrigatório, o teto estrangulou o gasto discricionário resultando no subfinanciamento de inúmeras políticas públicas. Embora o colapso do teto tenha coincidido com o advento da pandemia, já havia vestígios de seus descumprimentos antes disso, em 2019.

O fim do teto requereu a apresentação de uma nova regra. O Novo Arcabouço Fiscal foi apresentado sob a prerrogativa de ser sustentável, por ser mais flexível do que o teto. Em outras palavras, a instituição de bandas onde poderia flutuar o gasto e as metas primárias, permitiria o cumprimento da regra e daria um horizonte de previsibilidade aos agregados fiscais. Em artigo nesse espaço do dia 05/05/2023 dedicado a comentar tal regra, argumentei que mesmo o arcabouço mais flexível dependeria de reformas adicionais para se perenizar.

Foi exatamente isso o que aconteceu! Agora, o governo revê a meta primária para os dois próximos anos, ressuscitando o velho padrão de discricionariedade fiscal dos últimos 15 anos e exacerbando as incertezas quanto a sustentabilidade dos agregados. O ajuste fiscal será postergado para a próxima legislatura. Se isso acontecer, Lula pode estar criando uma armadilha para si próprio, na inversão do ciclo de negócios, diante de condições macroeconômicas deterioradas, pode ser obrigado a lidar com um ajuste fiscal futuro em uma conjuntura muito mais adversa do que a atual.

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