Publicado no Jornal Valor Econômico no dia 13/06/2023
No último dia 23/05 a Câmara dos deputados aprovou, por 372 a 108 o texto base do Novo Arcabouço Fiscal, após a aprovação dos chamados destaques o texto deve ir para o Senado e ser aprovado sem maiores resistências. A formulação de uma nova regra fiscal após os consecutivos descumprimentos do Teto de Gastos, que deixa de vigorar, é bastante bem-vinda e inaugura, pelo menos a curto prazo, um ambiente macroeconômico mais harmônico.
Retomando um ponto discutido em meu último artigo neste espaço, regras fiscais têm duas dimensões: uma puramente fiscal, a qual o governo anuncia os critérios pelos quais irá manusear seus instrumentos visando preservar uma trajetória estável do seu endividamento. A outra dimensão é a macroeconômica, isto é, a regra funciona como uma informação que irá guiar decisões do mundo privado quanto à poupança, investimento, consumo, preços etc. Esta segunda dimensão só pode ser compreendida a partir de modelos macroeconômicos estruturados sobre microfundamentos.
No tocante à dimensão fiscal este arcabouço pode não ser capaz, na ausência de reformas adicionais, de estabilizar a relação Dívida/PIB que no Brasil encontra-se em patamar demasiadamente elevado. Segundo dados do Banco Central, embora em queda desde o final da pandemia, a DBGG hoje é de 83% do PIB. Alguns efeitos que fizeram esta relação ceder artificialmente no período recente como a inflação elevada e seus efeitos sobre o PIB nominal, somado a uma taxa de crescimento do PIB nos últimos anos sistematicamente acima das previsões, tendem a desaparecer. Ademais, a taxa implícita de juros, aquela que deve ser utilizada como parâmetro para o custo de rolagem do endividamento público tem apresentado uma inclinação ascendente. Isto posto ao longo do tempo, significa que dívida antiga que vence a um custo menor está sendo substituída por dívida nova acometida por um custo maior.
No livro “Crisis y Reestructuración de Deuda Soberana” Cosentino et al. (2017) demonstram que a dinâmica do endividamento público resulta da dinâmica de vários outros vetores, como o custo de rolagem, a inflação, o PIB e o resultado primário. Levando isto em consideração e diante do contexto supracitado de elevação do custo de rolagem com estagnação do PIB, a manutenção de uma trajetória de queda do endividamento público brasileiro voltará a depender da dinâmica do resultado primário.
Utilizei o modelo dos autores para realizar estimações de pontos de limiares na relação entre superávit primário e endividamento público para o caso do Brasil. Segundo os resultados encontrados, o ponto de quebra a partir do qual o resultado primário altera a tendência do endividamento público é de 1,8% do PIB. Este limiar foi estimado para uma amostra que contempla observações entre 2002 e 2022, uma série tão longa contempla momentos bastante distintos em termos do comportamento dos dados utilizados. Por isso, estimações adicionais foram realizadas para seguimentos da amostra de elevado endividamento público. Por exemplo, ao considerar o período pós 2014, os testes indicam um limiar negativo para um primário de 1,1% do PIB, o que pode ser lido como um déficit primário desta magnitude tem capacidade de impor uma trajetória de raiz unitária para a DBGG/PIB.
Já para o período iniciado em 2002 e findado em 2006, que guarda bastante semelhanças com o período atual devido ao endividamento público elevado e o custo de rolagem alto, o primário estimado para reverter a inclinação da curva do endividamento público foi de 2,1%. Voltando ao arcabouço aprovado na Câmara, ele passa a vigorar com a previsão de resultados primários de 0% em 2024; 0,5% em 2025 e 1% do PIB no último ano da legislatura, em 2026. A inovação da regra contempla que este resultado flutue entre bandas de 0,25% do PIB para cima, ou para baixo.
Pelos resultados das estimações supracitadas, as metas primárias previstas para o próximo triênio não estabilizam a relação dívida/PIB. Porém, um leitor atento ao contexto fiscal brasileiro da última década pode contra-argumentar que a regra anterior, o Teto de gastos, não produziu durante a sua vigência superávits primários e foi capaz de manter estável o endividamento público.
Este é o momento de direcionar os olhares para a outra dimensão de uma regra fiscal, a macroeconômica. Uma vez aprovada e em vigor, uma regra, fiscal ou monetária, passa a ser incorporada pelos agentes no momento de tomar decisões. No momento de sua aprovação, uma regra fiscal é lida por firmas e famílias como a renúncia do governo que a propõe a um padrão de discricionariedade macroeconômica que produz ineficiência. Não por outra razão o Teto estabilizou a relação dívida/PIB sem produzir superávits primários nos anos de sua vigência. Mas ele foi capaz de administrar bem expectativas com vistas a inverter a inclinação da curva de juros e da inflação.
O Arcabouço tem a chance de produzir efeitos macroeconômicos no presente, semelhantes ao do Teto em 2017, no contexto de sua aprovação. Isso posto em uma economia pautada por expectativas racionais, se o governo é crível e demonstra na sua comunicação propensão a cumprir a regra, outros vetores que influenciam o endividamento público como o custo de rolagem e o próprio PIB podem apresentar melhoras de curto prazo. Neste caso, se as expectativas se ancoram, a relação dívida/PIB pode manter-se estável mesmo diante de resultados primários inferiores aos limiares estimados anteriormente.
Porém, esta credibilidade é difícil de ser conquistada e fácil de ser perdida. Se o governo e os partidos da base irão colocar capital político no cumprimento da regra ainda saberemos. Ademais, o Teto foi concebido e aprovado em um contexto de reformas fiscais mais amplas, como a da previdência, a TLP e outras não aprovadas como a tributária.
Para que o Arcabouço tenha efeitos expectacionais mais duradouros é preciso saber quais as reformas adicionais serão propostas visando a preservação de seus parâmetros a longo prazo. Hoje se vê um claro esforço no sentido de restabelecer receitas, porém a dinâmica do gasto obrigatório ainda é um risco a médio prazo não observado até aqui. É preciso, ainda, afastar os riscos políticos inerentes a uma regra desta natureza que são: i) operar sistematicamente no limite inferior da banda, neste caso as metas implícitas do primário para o próximo triênio se acomodariam em -0,25%; 0,25% e 0,75% do PIB respectivamente, ou ainda ii) de o governo aprovar a regra, porém descumpri-la sistematicamente como vimos acontecer com o Teto e outras regras fiscais.
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