As Nuances do Novo Arcabouço Fiscal

Publicado no Jornal Valor Econômico Em 05/05/2023

Após alguns meses de controvérsia envolvendo a questão fiscal, o governo enviou para o parlamento a sua regra. O regime fiscal atual alicerçado sobre o teto de gastos será substituído por uma nova regra que prevê uma combinação de metas primárias e vinculação de despesas às receitas públicas.

Para a literatura econômica, regras fiscais têm duas dimensões: a primeira é a fiscal, a regra deve sinalizar uma trajetória sustentável de agregados como dívida e despesas públicas. A segunda, geralmente negligenciada, é a macroeconômica. Kydland e Prescott (1977) levantaram o problema da inconsistência dinâmica de planos econômicos. Em um mundo permeado por incertezas, onde os agentes maximizam intertemporalmente seu bem-estar, as regras de política são informações sobre os padrões pelos quais o governo manuseia seus instrumentos a fim de guiar decisões do setor privado. Em outras palavras uma regra fiscal não consiste apenas em um plano de consolidação das contas públicas, mas são também instrumentos utilizados para lidar com o problema da inconsistência dinâmica, capazes de melhorar o desempenho de uma economia a longo prazo.

O efeito imediato pelo qual uma regra fiscal melhora o desempenho econômico se dá sobre os preços financeiros. Se a política fiscal é demasiadamente discricionária, haverá uma tendência natural à volatilidade destes preços, com implicações sobre a alocação de capital. Outro efeito importante de um compromisso com um padrão fiscal ocorre sobre a política monetária. O Brasil adotou o regime de metas de inflação em 1999, concomitantemente ao regime de metas primárias, e às discussões sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal que, segundo Afonso (2016) tiveram início em 1998 até sua aprovação final em 4/5/2000. De lá para cá, o Banco Central só foi capaz de conciliar uma inflação próxima ao centro da meta, com uma tendência de queda da taxa básica de juros, em momentos cujas regras fiscais vigentes foram cumpridas.

Embora o teto de gastos tenha sido desmoralizado pelos rompimentos consecutivos desde a pandemia, é preciso salientar que ele, atrelado a outros regramentos como a LRF e o regime de metas primárias foram eficientes até aqui para manter cointegradas as variáveis fiscais como receitas, despesas com a atividade econômica. Em ensaio empírico recente, eu e o Profº Cleomar Gomes demonstramos isso. Ademais, o teto parece ser uma regra melhor para lidar com o supracitado problema da inconsistência dinâmica, uma vez que atrela a dinâmica da despesa à da inflação, em um regime de metas é possível saber qual seria a dinâmica de longo prazo do gasto primário. Além disso, o teto sinalizava que a carga tributária não sofreria elevações de longo prazo, com efeitos significativos sobre a renda permanente dos agentes.

No que se refere ao arcabouço fiscal proposto, pairam dúvidas. A regra delega a fixação de metas primárias para a LDO. O Brasil utiliza tais metas desde 1999, sobre isso não há nada de novo, a grande inovação se deu pela implementação de bandas de 0,25% para cima ou para baixo. Em outras palavras a regra dá uma margem de 0,5% do PIB dentro da qual a meta primária pode flutuar. Tomando o resultado previsto na LDO para 2024 de 0% do PIB, a meta primária pode ser de -0,25%, ou 0,25% (um intervalo de R$57 bilhões).

Esta é uma flexibilidade excessiva e inspirada no regime de metas da inflação, caracterizado por um alvo entre bandas simétricas (superior e inferior) dentro dos quais o índice de preços pode flutuar. Há, no entanto, riscos em levar a lógica da política monetária para a fiscal. A inflação é um fenômeno econômico, fruto de relações de mercado e de choques probabilísticos, já o resultado primário oriundo de uma dinâmica da despesa e receita é um fenômeno político e econômico que resulta de incentivos diferentes. Buchanan e Wagner (1977) dissertaram sobre o problema do viés de déficit da política fiscal, resultante do incentivo de os políticos criarem déficits visando permanecer no poder. A regra proposta produz o risco real de que o limite inferior previsto da banda se torne um alvo implícito para onde o governo levaria o resultado primário a longo prazo. Se isso acontecer, haverá um ônus reputacional à regra e o problema da inconsistência dinâmica ressurgirá a médio prazo. Ou seja, os agentes precificarão que a banda inferior é o alvo e tomarão suas decisões baseadas nisso.

Este, entretanto, não é o único problema da regra que também prevê atrelar a dinâmica da despesa à das Receitas Correntes Líquidas (RCLs). Segundo consta no texto da LDO, as despesas reais devem crescer a 70% das RCLs acumuladas no ano anterior. A regra permite ainda uma flutuação do gasto real entre 0,6% e 2,5%. Concebendo um multiplicador das receitas maior do 1, estas bandas sugerem que em momentos de crescimento do PIB o gasto público irá crescer abaixo das receitas (2,5%) e em momentos de desaceleração do PIB, ou recessão, quando as receitas se retraem o gasto tem margem para crescer em termos reais (0,6%) suavizando o ciclo. Uma concepção razoável e baseada na literatura de estabilizadores automáticos.

Embora seja uma regra mais flexível do que o teto de gastos, percebe-se por estes parâmetros a nova regra também não lida, sem legislação adicional, com um choque como o da pandemia. Ademais, isso posto no quadro normativo que contempla o crescimento involuntário da despesa por força de lei, não estão claros os instrumentos que o governo tem à disposição a fim de preservar tais parâmetros no tempo e manter a dinâmica dos gastos e das RCLs atreladas, sobretudo em momentos de crise. A princípio percebe-se que o vínculo será mantido por vias da tentativa de ampliar o esforço fiscal do Estado, isto é, sua capacidade de arrecadação.

Isso reforça o perfil spend-tax da economia brasileira, ou seja, expansões da despesa produzem elevações tributárias permanentes à posteriori. Sobretudo no Brasil, onde há uma assimetria no tratamento normativo de despesas e receitas públicas. As primeiras fixadas na Constituição, cujas revisões envolvem um processo legislativo que requer maioria qualificada nas duas casas. Enquanto as receitas podem ser legisladas via decreto; medidas provisórias e leis complementares.

A literatura mais recente sobre regras fiscais está direcionada, à formulação de instituições de enforcement (aplicação efetiva) que são: controles e avaliações externas; ampliação da transparência, e punição a policmakers que não as respeitem. Tais itens não foram contemplados neste arcabouço que deverá ser aprimorado com o tempo.

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