Publicado no Jornal Correio Braziliense em 27/03/2022
“Mas as nuvens do erro que escurecem as mentes se dissiparão, se dissolverão, e o sol da verdade terminará, cedo ou tarde, por triunfar” (Bobbio, p 139)
A sentença acima foi extraída do “Elogio da Serenidade”, de Norberto Bobbio. A preocupação do autor era com uma visão eclética de verdade, em um contexto em que grupos sociais antagônicos possuem concepções distintas sobre uma verdade. Neste contexto, o princípio da tolerância é fundamental para que diferentes concepções de verdade possam coexistir, no mesmo tempo e espaço, sem que rivalidades resultem em violência. De forma intuitiva, o apelo à tolerância quanto as verdades alheias, é um problema das democracias, já que no autoritarismo a imposição de uma verdade sobre as demais se dá via truculência.
Um dos problemas que surgem em sociedades democráticas, hiperconectadas e de informações instantâneas, é que a questão da tolerância pode ser traduzida para os fins deste argumento, como os limites da liberdade de expressão. É difícil mergulhar no pantanoso terreno do que deve, ou não ser tolerado, sem apelar a argumentos morais. Apologistas de causas esdrúxulas como os antivacinas, recorrem ao princípio da liberdade individual para exercerem o “direito” de não se vacinarem. A invocação do princípio da liberdade para tal fim recorre (de forma bastante empobrecida) a uma moralidade liberal, talvez anarquista.
Do outro lado do espectro social, há os que acreditam no método científico e, portanto, em vacinas. Se a extensão da cobertura vacinal não alcançar o total da população mundial, a presença de grupos não vacinados estimula a reprodução do vírus abrindo a possibilidade para o surgimento de novas cepas. Tais variantes podem, em algum momento, tornar-se resistentes às vacinas disponíveis e prolongar a pandemia no tempo. Neste caso, a população vacinada é diretamente afetada pelo delírio antivacina. Tem-se aqui um claro confronto entre princípios morais, uma vez que o direito de não se vacinar de um grupo, interfere no direito a uma vida próspera e saudável de outro grupo. Como resolver?
Mais recentemente, outra polêmica veio à tona envolvendo uma conversa de redes sociais. Uma caricatura da profecia de Umberto Eco de que tais mídias dariam voz a uma legião de idiotas, agravada pelo fato de que além de voz, podem dar alcance às piores ideias. A polêmica envolvendo um youtuber e um deputado federal invocava o princípio da liberdade somado à pretensa equivalência entre os crimes do nazismo alemão e do comunismo stalinista, maoísta ou castrista, para reivindicar o direito de manifestação política pró-nazista. A invocação do “direito à liberdade” de grupos se posicionarem politicamente partindo de uma concepção racista de mundo, incorrem no mesmo conflito moral supracitado na questão antivacina. O direito moral da liberdade política de uns, se opõe ao direito a uma vida digna e segura de outros.
A questão que se impõe neste contexto é se o princípio da tolerância trabalhado por Bobbio deve ser levado em conta no caso dos antivacinas ou dos nazistas? A resposta é dada pelo próprio Bobbio “todas ideias devem ser toleradas, menos aquelas que negam a ideia de tolerância” (p. 153). A invocação do princípio da liberdade para justificar ideias socialmente perigosas é má fé, que não interessa aos liberais de boa formação intelectual, pois os desmoralizam. Nesse contexto, não se trata simplesmente de uma mera disputa pela verdade, no sentido de que seja possível coexistir duas ou mais verdades em temas como a eficácia de vacinas e o direito às manifestações nazistas. Do ponto de vista do julgamento histórico, é óbvio que a verdade já assumiu seu lado e nazistas ou antivacinas perderam a disputa.
O problema que se impõe são as consequências que falsas verdades produzem no comportamento social. Como nos ensina o historiador Richard Weaver, ideias têm consequências e não podem ser desconectadas da fé que elas produzem nos homens, independentemente do seu mérito. Ideias perigosas, em um mundo de informações instantâneas, problemas sociais crônicos e cristalização de bolhas em redes sociais, podem encontrar terreno fértil para germinarem e se encaminharem para o ativismo político, podendo produzir as piores consequências.
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