Gastar, Arrecadar e a Retórica da Austeridade

Escrito com Cleomar Gomes no Jornal Valor Econômico em 07/05/2021

A polêmica recente envolvendo o orçamento tem escancarado alguns problemas de fundo da condução da política fiscal no Brasil. Primeiramente, as regras fiscais existem, mas ainda são falhos os instrumentos legais que obrigam o governo a cumprir tais regras. Em segundo lugar, há excesso de outras regras não fiscais que exercem grande impacto orçamentário e causam rigidez no gasto público.

Sessão Deliberativa Remota do Congresso Nacional (para senadores) destinada à deliberação sobre a LOA 2021.

Neste cenário, ainda mais complicado por uma elevada dívida pública para padrões emergentes, o Brasil se viu obrigado a empenhar esforços fiscais inéditos na sua história para fazer face à pandemia do coronavírus. O decreto de calamidade pública e a PEC do orçamento de guerra fizeram com que as regras fiscais, como Lei de Responsabilidade Fiscal e Teto de Gastos, ficassem temporariamente suspensas. O resultado foi um déficit primário de aproximadamente R$782 bilhões.

Na virada de 2021, e ainda sem orçamento devidamente aprovado, o governo agiu discricionariamente e aprovou um salário-mínimo acima do inicialmente proposto. Isto feito, um conjunto de rubricas de despesas obrigatórias do orçamento tiveram suas projeções aumentadas compulsoriamente. Neste contexto, o Congresso Nacional aprovou, no final do 1° trimestre de 2021, o orçamento para o ano corrente, que veio contemplado com um novo Cavalo de Tróia. Despesas obrigatórias foram subestimadas para dar espaço legal a outros gastos, principalmente o pagamento de emendas e o atendimento de bases eleitorais dos parlamentares. Por outro lado, não foram considerados importantes gastos necessários para a continuação do enfrentamento da pandemia, que tem se mostrado extremamente mais letal nesta segunda onda.

Os economistas Alberto Alesina e Roberto Perotti, em artigo publicado em meados da década de 1990, argumentaram que nenhuma regra fiscal pode impedir um déficit se isto é o que um governo ou legislatura estão dispostos a fazer. Esta máxima parece estar orientando os formuladores da política fiscal em ambos os lados da Praça dos Três Poderes. Mais do que isto, a peça orçamentária votada, se analisada no âmbito da retórica fiscalista da equipe econômica, ecoa outro fenômeno conhecido da literatura sobre finanças públicas: a chamada Ilusão Fiscal. Este termo, cunhado pelo economista italiano Amilcare Puviani, se refere ao elevado custo que as sociedades têm para fiscalizar o orçamento, elevando incentivos de aumentos de gastos governamentais.

Nas sociedades democráticas contemporâneas, caracterizadas por uma demanda cada vez mais diversificada por bens e serviços públicos, a pressão social por mais despesas públicas é natural, fazendo com que elas cresçam involuntariamente, aos moldes da chamada Lei de Wagner. Em períodos de recessão econômica e elevado nível de desemprego, estas pressões se intensificam. No Brasil, no entanto, as pressões sociais legítimas por mais gastos públicos são, muitas vezes, cristalizadas na lei e na Constituição. Desta forma, parece ser difícil empenhar ajustes das contas públicas pelo lado das despesas, pois os mesmos sempre dependem de PECs, que por sua vez demandam um elevado esforço legislativo e quase sempre são impopulares.

Este é um clássico debate na literatura teórica e empírica que vislumbra um nexo causal entre a arrecadação e o gasto público. Em 1961, Alan Peacock e Jack Wiseman analisaram a dinâmica do gasto público do Reino Unido e verificaram que episódios temporários, como guerras, demandavam aumentos temporários de gastos públicos, com consequentes elevações permanentes da carga tributária. Este fenômeno gerou a clássica taxonomia “gastar-arrecadar”. Em 1978, Milton Friedman defendeu que o governo só gastasse recursos que possuísse previamente, surgindo então a taxonomia “arrecadar-gastar”.

No Brasil, as evidências da literatura empírica apontam para uma predominância da taxonomia gastar-arrecadar. Significa que gastos públicos são contratados e, posteriormente, receitas devem ser geradas por vias de elevações tributárias e/ou de dívida pública. Estimações mais recentes destes economistas que aqui escrevem confirmam esta causalidade indo da despesa para a receitas com algumas ressalvas, pois o movimento é assimétrico. As nuances do orçamento brasileiro fazem com que quando as receitas crescem, dado um crescimento econômico mais acelerado, haja uma elevação até involuntária de um conjunto amplo de despesas. No entanto, na inversão de ciclo, quando a atividade econômica desacelera, juntamente com as receitas, os gastos obrigatórios continuam em trajetória de elevação, mas as despesas discricionárias (entre elas os investimentos públicos) declinam. Assim, os resultados indicam que despesas obrigatórias parecem se encaixar mais na taxonomia “gastar-arrecadar”, ao passo que despesas discricionárias parecem ter causalidade oposta do tipo “arrecadar-gastar”, pois dependem mais do desempenho das receitas.

Estas mesmas estimações apontam que, nos vinte anos compreendidos desde o regime de metas de superávit primário firmado em 1999, receitas e despesas públicas tiveram um comportamento padrão de longo prazo, de forma que mesmo diante de choques de curto prazo que pudessem descolar estes agregados de sua tendência, eles sempre retornaram à sua trajetória. Entretanto, este retorno tem sido cada vez mais lentos e, além disso, não há garantias de que este comportamento seja mantido daqui para frente. As dificuldades envolvendo a recuperação econômica da economia brasileira causam incertezas sobre o comportamento das receitas. Já pelo lado das despesas, a crise recente acentua as pressões sociais por mais gastos públicos. Tudo isso agravado por uma dívida pública que ronda perigosamente a casa dos 100% do PIB.

Se, por um lado, a pandemia do coronavírus impôs a necessidade de elevação de gastos públicos direcionados à solução do problema, por outro, erros e omissões no lidar com a doença estão fazendo com que os estímulos fiscais se prolonguem para além do necessário. Isso pode colocar mais pressão sobre a já elevada carga tributária brasileira no longo prazo e pode, inclusive, colocar a perder regras relevantes para a sustentabilidade fiscal do país. No curto prazo, no entanto, esforços devem ser concentrados na solução dos problemas relativos à pandemia, poupando vidas possíveis e tornando crível a política fiscal.

Benito Salomão e Cleomar Gomes da Silva, ambos do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia.

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